Anselmo de Cantuária

Anselmo de Cantuária, nascido em 1033 na cidade de Aosta, nos Alpes italianos, viveu numa Europa que ainda digeria o impacto da queda do Império Romano. Era um tempo de reformas monásticas, reis em conflito com papas, e mosteiros que funcionavam como ilhas de saber em um mar de instabilidade política. Nesse cenário, Anselmo se tornou monge, depois abade do mosteiro de Bec, e por fim arcebispo de Cantuária, na Inglaterra. A trajetória de sua vida, no entanto, é apenas o palco para algo mais inquietante: o esforço de pensar Deus com a mesma minúcia com que um geômetra mede as proporções do mundo.

Dizer que Anselmo foi um teólogo seria pouco. Ele foi, antes de tudo, um pensador que acreditava que a fé não é um ponto final, mas um ponto de partida. Sua máxima mais conhecida, “fides quaerens intellectum”, não foi escrita para enfeitar pergaminhos ou ser repetida em retiros espirituais. Era uma metodologia. Para ele, crer não excluía o pensar — crer exigia pensar.

Fé que exige pensar

Anselmo não queria provar Deus aos incrédulos. Ele escrevia para os que já criam, mas que não se contentavam em crer de olhos fechados. Sua obra mais famosa, Proslogion, é uma oração. E ao mesmo tempo, um exercício de lógica. Isso já diz bastante sobre quem ele era. O livro começa com uma súplica, mas logo desemboca em um raciocínio que o tornaria conhecido por mil anos: o argumento ontológico para a existência de Deus.

A ideia é simples de explicar, mas complexa de aceitar: se podemos conceber em nosso entendimento um ser do qual nada maior pode ser pensado, então este ser não pode existir apenas na mente — pois um ser que exista na realidade é maior do que um que exista apenas como conceito. E se é verdade que nada maior pode ser concebido, então esse ser — Deus — deve existir também na realidade. Do contrário, não seria o maior.

A conclusão parece estranha à primeira vista, mas é menos absurda do que pode parecer. Anselmo não está falando de qualquer coisa — ele fala de um tipo específico de ser. Um ser cuja própria essência envolve a existência. Um ser necessário. Não como uma cadeira ou uma estrela, que podem ou não existir, mas algo que não pode não existir.

Um oponente inesperado

Não demorou para que aparecesse uma contestação. Gaunilo de Marmoutier, um monge de sua época, escreveu uma resposta dizendo, em resumo: se eu imaginar a ilha perfeita, com todas as belezas e riquezas possíveis, não quer dizer que essa ilha exista só porque posso concebê-la como perfeita. É uma crítica que ecoa até hoje.

Mas Anselmo respondeu com sutileza. Ele não estava lidando com ilhas. Uma ilha, por definição, é contingente. Pode ser de mil formas diferentes. Deus, por sua vez, é definido como o ser mais perfeito possível. E a perfeição absoluta, dizia ele, inclui necessariamente a existência. Se não existir, não é absoluto. E se não é absoluto, não é Deus.

Esse tipo de distinção mostra por que Anselmo não era apenas um monge piedoso. Ele tinha o rigor conceitual de um filósofo e a fé ardente de um místico. Suas orações eram labirintos mentais. Seus argumentos, quase que um ato de adoração racional.

Entre reis e exílios

Anselmo não viveu apenas nos livros. Como arcebispo de Cantuária, entrou em conflito direto com os reis da Inglaterra. O centro da disputa era a investidura — quem tinha o direito de nomear bispos, o papa ou o rei? Anselmo ficou do lado do papa, e pagou caro por isso. Foi exilado duas vezes. Não se curvou ao poder secular. Escrevia tratados teológicos enquanto via o mar da Normandia pela janela do exílio.

Há algo de profundamente moderno em sua postura: a separação entre fé e poder, entre consciência e obediência cega ao trono. Em tempos de teocracia disfarçada, essa resistência ainda fala alto.

A profundidade da reparação

Outra obra fundamental de Anselmo é o Cur Deus Homo — “Por que Deus se fez homem”. Ali ele procura compreender por que era necessário que Cristo morresse. Sua resposta foi revolucionária para a época: o pecado humano ofendeu infinitamente a Deus, e apenas alguém que fosse ao mesmo tempo plenamente humano e plenamente divino poderia reparar essa ofensa. Só Cristo, portanto, poderia redimir o homem.

Esse raciocínio lançou as bases da teologia da satisfação, influenciando profundamente a doutrina cristã ocidental. Não era uma teoria feita para catecismos infantis. Era uma tentativa de explicar, racionalmente, o que muitos tomavam apenas como um mistério de fé.

Um espírito que ainda provoca

Anselmo morreu em 1109, mas suas ideias continuam a fermentar. Kant rejeitou seu argumento ontológico dizendo que “existência não é uma propriedade”, enquanto Descartes o retomou, em outras palavras, para provar a existência de Deus pela razão pura. O debate persiste, o que só mostra a força da ideia original. Há algo de quase literário nisso: um monge medieval provocando filósofos iluministas oitocentos anos depois.

Uma mente como a de Anselmo não se acomoda. Ela persegue a verdade como quem persegue o rosto de um amor. Ele mesmo disse, em uma de suas passagens mais bonitas: “Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender. Pois creio que, se não crer, não compreenderei”. Isso não é apenas teologia. Isso é humanidade.

Imagine um homem ajoelhado numa cela de pedra, segurando uma pena e mergulhado em silêncio. Ele não está tentando convencer os outros — está tentando convencer a si mesmo de que sua fé não é irracional. Está tentando pensar Deus com honestidade. E esse esforço, mais do que qualquer livro ou cátedra, talvez seja sua maior herança.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *